Visão Global,

miopia doméstica.

Aos Domingos à noite a TCV tem emitido o programa Visão Global, com a participação de dois ilustres comentadores: Corsino Tolentino e José Filomeno.
Trata-se de um programa televisivo de assistência imprescindível para quem pensa Cabo Verde e para quem pensa em Cabo Verde.
Cada um a seu modo e na S/ perspectiva, os comentadores revelam, em bom Português, possuir preparação, informação, boa educação e opiniões que normalmente evidenciam ter sido amadurecidas após o necessário exercício de reflexão. Não dizem disparates e estão, felizmente, muito longe de outros exemplos, nomeadamente no meu país, a que assisto com desgosto. O próprio jornalista moderador é sóbrio, limita-se a colocar os temas na mesa e a controlar o tempo sem querer mostrar ter opinião. Um bom exemplo de jornalismo para tantas televisões de países ditos desenvolvidos.
A televisão de Cabo Verde está, por isso, de parabéns!

No passado Domingo dia 17 de Maio, a dada altura, a propósito do falhanço das elites que dominam a generalidade dos países africanos, foi referido, por ambos os comentadores, que seriam necessárias novas elites, formadas no estrangeiro, nomeadamente na Sorbonne ou em Harvard.
Ambos salvaguardaram o caso de Cabo Verde, o que me parece ser inteiramente justo, já que não se aplica aos seus líderes a ideia de falhanço… Corsino Tolentino, fiel à S/ visão particular, acrescentou que considera que os países africanos em si não falharam, antes falharam algumas das suas elites.

Independentemente de a Sorbonne, como Coimbra, já não ser propriamente aquilo que foi, afigura-se-me conveniente salientar o seguinte:
  • - Alguns dos cleptocratas, assassinos e ditadores que dirigem e/ou dirigiram países africanos formaram-se, quando se formaram, no estrangeiro, v.g. na Europa (para referir apenas alguns: José Eduardo dos Santos na URSS; Robert Mugabe em Londres; Abdullahi Yusuf Ahmed em Itália; Jean-Bédel Bokassa em França; Faure Gnassingbé em França, na própria Sorbonne). Se uma parte das elites de África teve formação mais ou menos doméstica, não é menos verdade que outra parte se formou na Europa, desde logo os piores ditadores, o que revela que a estrita formação académica num país europeu ou nos E.U.A não constitui garantia de decência;
  • - Apesar da enorme degradação do ensino em algumas universidades Portuguesas, a formação que elas prestam será ainda durante muito tempo muito mais adequada às realidades dos PALOPs do que a formação em França e/ ou nos E.U.A.;
  • - Nomeadamente em Direito, a área de saber que naturalmente mais elites produz e continuará a produzir;
  • - Nada nos garante que novas elites/alunos, formadas nessas universidades, deslumbradas pela riqueza e ambiente cultural que aí se vive, não se sintam, após vários anos, tentadas a ficar a viver nesses países, descurando as S/ origens;
  • - ou, pior ainda, não tentem enriquecer sem escrúpulos, rapidamente, nos seus próprios países, à custa dos seus próprios países;
  • - Mais adequada do que a formação em França, nos Estados Unidos ou mesmo em Portugal, seria a formação em África, em universidades com ensino de boa qualidade, com corpo docente idóneo e num ambiente genuinamente democrático;
  • - O estudante realizaria a sua formação académica de base (desejavelmente com pós-graduações noutros ambientes académicos) num contexto cultural próximo do seu e com preocupações próximas das da sua própria comunidade;
  • - A cidadania, o amor à liberdade e o respeito pela Democracia e pelas suas regras não se aprendem só nos livros, vivem-se no dia a dia numa sociedade amável, pacífica, de cidadãos responsáveis, que floresce num estado de direito, com uma constituição decente, num ambiente onde as liberdades fundamentais são reconhecidas e respeitadas como tal e onde o debate, a alternância e a legitimação políticas se fazem com decência e naturalidade;
  • - Reconheço que será difícil alcançar esse desiderato. Mas não é impossível;
  • - Sabemos em que país de África existe esse ambiente (há problemas, mas quem os não tem?);
  • - Eu sei que nesse/neste país há pelo menos uma instituição de ensino superior que se determinou e se esforça por formar as futuras elites, preparando-as com um ensino de qualidade e com uma formação e desenvolvimento globais e para a cidadania;
  • - Essa instituição e outras que porventura existam, deve ser acarinhada;
  • - A opinião mencionada supra, exposta no programa Visão Global, reforça o preconceito de que o que temos em casa não presta, pode não ser fundamentada (ao contrário de outras) e é indesejável aos interesses do país;
  • - Convém ser desfeita, caso não corresponda à realidade;
  • - Até porque a instituição a que me refiro tem condições para, no futuro, conseguir atrair estudantes de outros países;
  • - Como observador atento, como estrangeiro desinteressado mas com alguma experiência, posso dar o m/ testemunho, o qual é o seguinte:
No início do corrente ano lectivo, fui convidado a leccionar duas cadeiras no curso de Direito do IESIG.
Desde logo intuí e mais tarde reconheci, na Direcção desse instituto, saudável seriedade e genuína preocupação com o estabelecimento de critérios elevados de qualidade de ensino. Seduziu-me, aliás, a ideia, que percebi, de que este estabelecimento pretende ser uma instituição de referência em Cabo Verde e desempenhar um papel central, precisamente, na formação das suas elites.
Foi por isso que acedi em colaborar, com muitíssimo gosto e empenho, mas algum sacrifício da m/ vida pessoal e profissional;
Quando cheguei, a expectativa era grande e o receio, confesso, também.
Conhecia já o nível de alguns estudantes Cabo-verdianos em Portugal, mas esses, normalmente, eram bons alunos, vencedores de bolsas de estudo…
Com experiência na formação e avaliação de advogados estagiários na Ordem dos Advogados em Portugal, foi com um enorme alívio e satisfação que me deparei com o nível geral da turma do 3º ano de Direito do IESIG no corrente ano lectivo… Considerando que, agora, na Europa (que alegremente decidiu destruir o seu ensino universitário, com o regime de Bolonha*), os estudantes concluem as S/ licenciaturas em 3 anos, posso dizer que não encontrei grandes diferenças qualitativas entre os meus alunos de 3º ano e boa parte dos licenciados que hoje se inscrevem na Ordem dos Advogados. Aliás, aqui, encontrei vários com boas capacidades intelectuais e humanas.

Entretanto, boa parte daqueles que aqui têm mais dificuldades devem-nas ao deficiente domínio do Português, no qual o IESIG não tem responsabilidades, mas com o qual tem que se preocupar, e muito.

Aqui fica, portanto, o meu reparo, o meu alerta e, principalmente, o meu preito de homenagem e amizade aos meus alunos deste terceiro ano que, confio, saberão, cada um a seu modo, constituir uma elite (no verdadeiro sentido da palavra) nas comunidades onde se inserem (até lá que estudem, com afinco, para poderem concluir o ano com sucesso).

Aqui fica, também, a m/ provocação e sério aviso aos que os sucederão, principalmente se eu continuar a colaborar com esta casa que tão bem me recebeu.

Sursum corda
Pedro Branco da Cruz

*P.S. Com humor, pode dizer-se que, na Europa, a ideia de Universidade começou e acabou em Bolonha.

(o presente texto é da única responsabilidade e iniciativa do seu autor)

1 comentário:

Antonio Duarte disse...

Mais um comentário sobre um assunto importante, que o Dr. Pedro Cruz utiliza para fazer uma abordagem sobre elites, mostrando que é possível termos mais elites em África, especialmente elites que sirvam como referência a este continente já por demais magoada com pseudo-elites que nada mais fizeram (fazem) que destroçar a terra e o povo que os viu nascer. Eu, com ou sem formação académica, sinto que faço de uma elite que luta para transformar o chão que piso num terreno sem minas de qualquer ordem, onde se pode deitar, rebolar, respirar, estar sem medo e, acima de tudo, viver na maior harmonia possível.
Luíz Rodrigues