Da oponibilidade a terceiros dos direitos de crédito. Abuso de direito

Mais jurisprudência útil em relação a matérias importantes de Direito das Obrigações. Neste caso, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que se pode encontrar aqui na sua totalidade:

«4.5 – Da oponibilidade a terceiros dos direitos de crédito. Abuso de direito
Chamando à colação doutrina e jurisprudência autorizada, a agravante defende que os direitos de crédito são pessoais e protegidos pelo «dever universal de respeito» e tão oponíveis como os direitos reais. Para aqueles que permanecem no equívoco da eficácia relativa das obrigações, recorda-se que o Código Civil – artigo 610º e seguintes – atribui ao credor o poder de actuar directamente contra a terceiros de má fé que tenham adquirido bens do devedor em seu detrimento.
*
Cumpre decidir
A obrigação que designa o lado passivo de qualquer relação jurídica é definida no artigo 397º do CC como o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação. A prestação a que se encontra adstrito o devedor destina-se a satisfazer o interesse do credor, o qual deve ser digno de protecção legal (artigos 398º, nº 2 e 443º, nº 1 do CC). Credor e devedor devem proceder com boa fé, «princípio fundamental da ordem jurídica, com especial relevância no campo das relações civis. Exprime a preocupação da ordem jurídica pelos valores ético-sociais da comunidade, pelas particularidades da situação concreta a regular e por uma jurisdicidade social e materialmente fundada (…). A boa fé reporta-se a um estado subjectivo, tem em vista a situação de quem julga actuar em conformidade com o direito, por desconhecer ou ignorar, qualquer vício ou circunstância anterior (…). Aplicados aos contratos, o princípio da boa fé em sentido objectivo constitui uma regra de conduta segundo a qual os contraentes devem agir de modo honesto, correcto e leal, não só impedindo assim comportamentos desleais como impondo deveres de colaboração entre eles[ 7]» (artigos 227º, nº 1, 239º, 334º, 437º, nº 1 e 762º, nº 2).
Ensina o Sr. Prof. Inocêncio Galvão Teles que «nos direitos reais, além do elemento interno consistente no poder sobre a coisa, há o elemento externo, consistente no dever, para as outras pessoas, de respeitar o exercício desse poder. Segundo certa orientação, também nas obrigações, ao elemento interno –o direito contra o devedor – acresce um elemento externo – o dever, imposto a todos, de respeitar o direito do credor, não impedindo o cumprimento nem colaborando no incumprimento. Enquanto o devedor incorre em responsabilidade civil, o terceiro incorreria em responsabilidade extra obrigacional. Não repugna aceitar esta orientação, de harmonia com o princípio geral expresso no artigo 483º do CC, mas há quem a conteste, só admitindo, quando muito, a responsabilidade de terceiros em caso de abuso de direito. (…) A lei permite a atribuição de eficácia real a certos contratos, normalmente constitutivos de simples direitos de crédito – artigos 413º e 421º do CC – mas verdadeiramente aí existe, a par da obrigação, um direito real de aquisição, ou seja, o direito, oponível a terceiros de adquirir determinada coisa»[8].
O Sr. Prof. M. J. de Almeida Costa refere-se à doutrina do efeito externo, que se traduz no dever imposto às restantes pessoas de respeitar o direito do credor, ou seja, de não impedir ou dificultar o cumprimento da obrigação (…), podendo os terceiros serem chamados a responderem para com o credor, dando como exemplo que A realiza com B um contrato promessa de venda do prédio X e aliena-o depois a C [ 9], enquanto este fosse culposamente responsável pelo inadimplemento do devedor. De seguida, este Mestre toma posição, indicando que a posição dominante entre nós e que tem como exacta, não admite, em princípio, o efeito externo das obrigações [10], apesar de admitir como «válvula de segurança» o abuso de direito [11].
Já o Sr. Prof. António Menezes Cordeiro defende que os direitos de crédito, porque direitos, se impõem, juridicamente a todas as pessoas, devem ser respeitados por cada um e produzindo nessa medida efeitos erga omnes, admitindo, todavia, a possibilidade do credor pedir contas a terceiros por força das regras do abuso de direito e das cláusulas gerais [12 ].
Posição completamente distinta é defendida pelo Sr. Prof. Menezes Leitão ao escrever: a obrigação tem como característica a relatividade estrutural e o regime da responsabilidade patrimonial implica a admissibilidade de constituir direitos de crédito incompatíveis entre si, não tendo o direito de crédito anterior prevalência sobre o posterior. Em certos casos, porém, a constituição do segundo direito de crédito pode ser vista como abusiva, para efeitos do artigo 334º, caso em que o terceiro poderá ser responsabilizado [13].
No plano da jurisprudência identificámos um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no processo nº 009822, datado de 26 de Junho de 1997, que defende que a lei portuguesa não reconhece uma eficácia externa das obrigações de forma a co-responsabilizar terceiro cúmplice pela indemnização devida pela sua violação ilícita, pelo que só ao devedor por ser exigida tal violação[14]. Um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo nº 9830815, datado de 21 de Novembro de 1997 onde se afirma que a nossa ordem jurídica não acolhe a chamada eficácia externa das obrigações apenas podendo aceitar que um terceiro responda em caso de abuso de direito[15]. O Supremo Tribunal de Justiça sufraga posição idêntica considerando que terceiro não pode ser responsabilizado com base na doutrina externa das obrigações, salvo se tiver agido com abuso de poder[ 16].
Aderindo-se à tese que sustenta que a co-responsabilização de terceiro cúmplice pela indemnização só é devida desde que este invada os terrenos interditos do abuso de direito (artigo 406º, nº 2 e 334º do CC), vejamos se a matéria de facto provada permite concluir que a 1ª requerida invadiu tais domínios.
A propósito do abuso de direito, ensinava o Sr. Prof. Antunes Varela que «na sua aparente simplicidade, o artigo 334º do novo Código – o tal que define o abuso do direito – constitui, na verdade, um manancial inesgotável de soluções, através das quais a jurisprudência pode cortar cerces muitos abusos"[17]
Prescreve o artigo 334º do Código Civil
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
No dizer do Sr. Prof. Manuel de Andrade, estamos em presença de um direito «exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça»[ 18].
(…)

[7] Sr. Prof. C. A. Da Mota Pinto – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, págs. 125 a 127.
[8] Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 16 e 17.
[9] Pressupondo, naturalmente, que as partes não atribuíram eficácia real ao contrato promessa.
[10] Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 73. Na nota 2 indica profusa doutrina e jurisprudência. O Sr. Prof. M. J. de Almeida Costa escreveu um artigo doutrinal na RLJ Ano 135º, pág. 132, sobre o tema «Eficácia Externa das Obrigações. Entendimento da Doutrina Clássica, onde continua a defender, juntamente com a doutrina predominante, em princípio a não eficácia externa das obrigações. Neste artigo indica profusa jurisprudência que faz depender a responsabilidade de «terceiro cúmplice» do abuso de direito.
[11] Esta posição é igualmente defendida pelos Srs. Profs. Manuel de Andrade – Teoria Geral das Obrigações, pág. 52; Mota Pinto – Direito das Obrigações, pág. 156 e segs.
[12] Direito das Obrigações, Reimpressão – 1986 – págs. 280 e 282. Apesar da defesa do direito de crédito como direito absoluto – oponível erga omnes – não deixa de ter algum significado o exemplo que dá como forma de não responsabilização do terceiro. Diz o seguinte – todos concordam que se Caio comprar a Carlos uma coisa, ignorando, de boa fé, que este se havia obrigado a vendê-la a Catarino, não se torna, de forma alguma, responsável pela violação do crédito deste último. Obra citada, pág. 280.
[13] Direito das Obrigações, I, 3ª edição, pág. 101.
[14] Publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[15] Publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[16] Acórdão datado 19 de Março de 2002, Col. Jur. (Acs. STJ) Ano X, tomo I, pág. 141 e 142. Também o acórdão da Relação de Lisboa, datado de 16 de Maio de 2006, proferido no âmbito do processo nº 3834/2006-7 defende que a invocação da violação dos princípios da boa fé e do fim social e económico do direito de propriedade, que se reconduzam à figura do abuso de direito, legitima invocar-se a eficácia externa. No mesmo sentido se pronunciou o acórdão da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo 659/2006-6, datado de 9 de Março de 2006, no qual se apela à figura do abuso de direito como causa justificativa do recurso à eficácia externa.
[17] Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., pág. 92 e 93.
[18] Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., pág. 297.

Contrato-Promessa, princípios da imediação e da livre apreciação da prova, invalidade de contrato, boa fé contratual, enriquecimento sem causa.

Temas analisados em interessante acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de que se reproduzem largos excertos:

«Sumário:
1) O princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 655.º do CPC impede a alteração da matéria de facto fixada em 1.ª instância, quando a decisão tenha sido criticamente fundamentada e a fundamentação não contrarie as regras da experiência nem a lógica do raciocínio.
2) O contrato-promessa rege-se pelas regras do contrato prometido, excepção feita às da forma e às que se mostrem inaplicáveis.
3) O vício decorrente da falta de certificação notarial da existência de licença de utilização ou de construção só gera nulidade do contrato-promessa se for arguido pelo promitente comprador (ou pelo promitente vendedor, no caso excepcional em que a lei o permite).
4) Sempre que seja conhecida a vontade real dos contraentes, é de acordo com ela que o contrato deve ser interpretado; mas sendo o negócio formal, terá de haver correspondência, mínima, ao menos, entre o texto do contrato e a declaração.
5) A boa fé contratual (artigo 762.º, n.º 2, do CC) postula lealdade de cooperação entre as partes.

6) O pedido fundado no enriquecimento sem causa tem de ser formulado expressamente, ainda que em via subsidiária.

...
Conforme as conclusões das alegações dos recorrentes, são questões a decidir:
a) A modificabilidade da decisão de facto

b) A invalidade do contrato-promessa.

c) A boa fé no cumprimento do contrato-promessa.

d) O enriquecimento sem causa

....
III. O direito


a) A modificabilidade da decisão de facto

São três as hipóteses em que a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida; b) se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou (artigo 712.º, n.º 1, do CPC, na redacção vigente até 31.12.07, que é a aplicável ao caso vertente).
Gravados, que foram, os depoimentos prestados e tendo os recorrentes indicado a matéria que consideravam incorrectamente julgada e os meios probatórios gravados (transcrevendo, inclusivamente, parte das gravações) que, na sua óptica, impunham decisão diversa, é claro que é possível a este Tribunal apreciar a factualidade dada por provada.
Cumpre advertir, porém, que o princípio da livre apreciação das provas, vigente no nosso ordenamento processual (n.º 1 do artigo 655.º do CPC), limita, de algum modo, a censura por parte do tribunal de recurso. Exposto o percurso lógico/racional que conduziu à convicção do julgador, com lastro bastante nos elementos probatórios constantes dos autos, dificilmente poderá ser alterada a decisão de 1.ª instância.
A modificabilidade é, na verdade, a excepção. Dando ao princípio da prova livre o alcance de “prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas em perfeita conformidade … com as regras da experiência e as leis que regulam a actividade mental”[1], não se vê como alterar o julgamento de facto, se a solução encontrada reflectir, com razoabilidade, uma convicção fundada em provas consideradas credíveis à luz dos dados da experiência, da ciência e da razão.

...

b) A invalidade do contrato-promessa
Se bem se compreende o teor da alegação dos recorrentes, um tanto prolixa, à semelhança das conclusões que a encerram (ou, talvez melhor, que a copiam), o contrato-promessa não seria válido, seja porque não foi referenciada ou exibida licença de habitabilidade ou utilização, seja porque o respectivo objecto é diferenciado da realidade existente ao tempo da sua celebração.
Na sentença recorrida qualificou-se juridicamente o acordo celebrado entre autor e réus – desenhado, em termos factuais, na alínea B) da matéria assente – como um contrato-promessa de compra e venda. Apesar de o enquadramento jurídico efectuado pelo tribunal “a quo”, mesmo se aceite pelas partes, como é o caso, não vincular o tribunal de recurso, temos por certo que não vale a pena discuti-lo, evidente, que é, que a aludida factualidade encaixa na perfeição no conceito de contrato-promessa, tal como é definido pelos nossos mais eminentes tratadistas, em função da previsão do artigo 410.º, n.º 1, do C. Civil: “convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato” (Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral, volume I, 7.ª edição, página 312; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição refundida, páginas 282/283; Abel Pereira Delgado, Do Contrato-Promessa, página 14).
O contrato-promessa rege-se, como decorre do referido artigo 410.º, n.º 1, do CC, pelas normas aplicáveis ao contrato prometido; vigora, pois, o chamado princípio da equiparação, que significa que “o contrato-promessa, quanto aos requisitos e efeitos, se encontra, via de regra, submetido às normas respeitantes aos contratos em geral e às que sejam específicas do contrato prometido” (Almeida Costa, Contrato-Promessa, uma síntese do regime actual, 4.ª edição, página 21).
Aplicam-se-lhe, assim, as regras comuns sobre capacidade, vícios da vontade, resolução, excepção de não cumprimento, etc., mas, também, as normas específicas da compra e venda quanto à capacidade dos contraentes, às proibições de aquisição, à interpretação e integração do negócio e à disponibilidade de direitos (Antunes Varela, ob. cit. página 319).
O princípio da equiparação comporta, no entanto, duas excepções, já que não são extensivas ao contrato-promessa as disposições relativas à forma, nem aquelas que, pela sua razão de ser, se mostrem inaplicáveis.
No que tange à forma, há que distinguir entre o contrato-promessa referente à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir e o contrato-promessa relativo a outros fins.
Para esta última hipótese rege o n.º 2 do citado artigo 410.º: se para a celebração do contrato prometido for exigível documento, seja autêntico, seja particular, o contrato-promessa só é válido se constar de documento assinado pelos contraentes.
À primeira hipótese aplica-se o n.º 3 do mesmo preceito: o documento deve conter o reconhecimento presencial da assinatura do promitente ou promitentes e a certificação, pelo notário, da existência da licença respectiva de utilização ou de construção; mas o contraente que promete transmitir ou constituir só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.
Como se sabe, não colheu unanimidade de pontos de vista a interpretação a dar à última parte do n.º 3 do artigo 410.º, havendo quem entendesse que configurava uma verdadeira nulidade e, como tal, invocável pelos terceiros interessados e susceptível de ser decretada oficiosamente pelo tribunal,[2] e quem sustentasse que se tratava de uma nulidade atípica, não invocável por qualquer interessado nem susceptível de ser declarada oficiosamente pelo tribunal e passível de sanação ou convalidação, na perspectiva de estar em causa a garantia de protecção ao promitente comprador, que é, por norma, a parte mais frágil no negócio (João Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, páginas 59 e seguintes).
O problema está, hoje, ultrapassado por via jurisprudencial; de facto, o assento n.º 15/94 (DR de 12.10.94), primeiro, e o assento 3/95, (DR de 22.04.95), depois, vieram clarificar aquilo que até aí constituía uma dor de cabeça para os intérpretes do direito: a omissão das formalidades prescritas no n.º 3 do artigo 410.º do CC não é invocável por terceiros (primeiro assento), nem susceptível de ser conhecida oficiosamente pelo tribunal (segundo assento).
Não obstante esta doutrina ter sido extraída sobre a primitiva redacção do preceito, parece líquido que se mantém em vigor, na sua função actual de mera uniformizadora de jurisprudência, por não ter havido modificação substancial entre uma e outra redacção do preceito (acórdão do STJ de 12.01.98, CJ do Supremo, Ano VI, tomo III, página 110). [3]
O contrato-promessa em questão não obedece ao preceituado no referido n.º 3 do art. 41º.º, pois que a promessa se refere à compra e venda de edifício, mas faltou a certificação notarial da existência de licença de utilização ou de construção.
A sentença recorrida declarou não poder ser conhecida a invalidade, por não ter sido arguida por quem quer que seja.
Defendem, agora, os recorrentes que o tribunal deveria ter declarado a nulidade, por estarem em causa interesses suscitados em sede de audiência de julgamento. Mas é evidente a sua falta de razão.
A acção foi proposta com base no incumprimento definitivo do contrato-promessa pelos recorridos, o que, naturalmente, pressupõe a afirmação da sua validade. A possibilidade de o mesmo enfermar de qualquer irregularidade nunca foi aventada nos articulados, nem sequer como mera hipótese académica.
Independentemente de saber se a arguição da nulidade, importando alteração da causa de pedir e do pedido, era, ainda, admissível em audiência de julgamento, [4] a verdade é que, analisando o teor das actas correspondentes às diversas sessões do julgamento, não se descortina o que quer que seja acerca de uma eventual pretensão dos recorrentes em ver declarada a invalidade do contrato-promessa; nem, tão-pouco, uma mera alusão aos tais “interesses” que os recorrentes teriam suscitado em audiência de julgamento. E “quod non est in actis, non est in mundo”.
Nem se vê, de resto, como poderia ter sido trazido à colação o espectro da nulidade, se os recorrentes não alteraram uma vírgula que fosse da pretensão deduzida “ab initio”, cuja procedência passava pela validade do contrato. Validade e invalidade, em simultâneo, é algo que briga com o rigor do direito e com a razoabilidade das coisas.
Em resumo, não foi arguida e, como tal, não pode ser declarada a nulidade ora pretendida pelos recorrentes.

Melhor sorte não logra a invocação da pretensa invalidade do contrato-promessa, derivada da circunstância de o seu objecto ser diverso da realidade.
Os recorrentes não explicitam os contornos de facto e de direito da teoria trazida à liça, limitando-se a dizer que “não se poderá validar um contrato promessa de compra e venda quando o objecto desse contrato seja absolutamente diferenciado da realidade existente”.
Parece óbvio, no entanto, que se reportam ao facto de a casa prometida vender, com a área de 40 m2, não existir de facto, por ter sido construída no seu lugar uma outra com a superfície de mais de 200 m2 (construção já existente à data da celebração do contrato-promessa).
A invalidade é, conforme Mota Pinto, uma espécie do género ineficácia, que provém de uma falta ou irregularidade dos elementos internos (essenciais, formativos) do negócio e se desdobra, por sua vez, em três subespécies: inexistência, nulidade e anulabilidade (Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª edição actualizada, páginas 591 e seguintes).
Segundo, ainda, o mesmo autor, são elementos essenciais de todo e qualquer negócio jurídico, a capacidade das partes (e a legitimidade, quando a sua falta implique invalidade e não apenas ineficácia), a declaração de vontade sem anomalias e a idoneidade do objecto (ob. cit., páginas 381/382).
O que, aparentemente, ancora a posição dos recorrentes, tendo em conta, naturalmente, a sua alegação, é a inidoneidade do objecto.
Nos termos do artigo 280.º, n.º 1, do CC, é nulo o negócio cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
Retornando a Mota Pinto, “será fisicamente impossível o objecto, quando, por exemplo, se vende um prédio urbano que já não existe por ter sido destruído por um incêndio” (ob. cit. páginas 546/547).
À primeira vista, a hipótese em apreço ajustar-se-ia aqui como uma luva; não existindo a casa prometida vender, o contrato-promessa seria, inelutavelmente, nulo.
Só que o problema não é tão simples assim. O objecto visado pelo contrato, o que as partes quiseram, efectivamente, incluir na promessa de compra e venda foi, não a casa com 40 m2 que consta do documento assinado (que, aliás, já não existia, como era do conhecimento de ambos os contraentes), mas a nova moradia erguida no lugar daquela.
A questão é saber se a vontade dos contraentes releva no caso concreto, atenta a natureza formal do negócio.
A resposta não pode deixar de ser afirmativa. Assente que os outorgantes quiseram realmente comprar e vender a nova construção e tendo a declaração correspondência, ainda que sem expressão perfeita, no texto do contrato (em qualquer dos casos, o objecto é um prédio urbano, com anexos e logradouro), não pode deixar de se entender, em face do preceituado nos artigos 236.º, n.º 2, e 238.º, n.º 1, do CC, que o objecto negocial foi a casa existente no terreno, e não a que a redacção do contrato-promessa contempla; tanto mais que desta interpretação nenhum prejuízo resulta para o promitente-comprador (a parte mais fraca, em princípio), na exacta medida em que a nova construção tem um valor muito mais elevado do que a anterior.
O objecto visado pelo contrato-promessa tem, pois, existência física e legal (os recorrentes até registaram provisoriamente a sua aquisição) e não aparenta outros vícios (que não foram, também, indicados), pelo que a alegada invalidade é totalmente de excluir.

c) A boa fé
Nos termos do n.º 1 do artigo 762.º do CC, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado; acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo que, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.
Para caracterizar o conceito, escreveu Antunes Varela, que, “do que se trata é de apurar, dentro do contexto da lei ou da convenção donde emerge a obrigação, os critérios gerais objectivos decorrentes de dever de leal cooperação das partes, na realização cabal do interesse do credor com o menor sacrifício possível dos interesses do devedor, para a resolução de qualquer dúvida que fundadamente se levante, quer seja acerca dos deveres de prestação (forma, prazo, lugar, objecto, etc.), quer seja a propósito dos deveres acessórios de conduta de uma ou outra das partes” (ob. cit, volume II, 5.ª edição, página 13).
Segundo os recorrentes, a falta de boa fé dos recorridos decorreria da circunstância de terem demolido parte especificada do objecto prometido vender posteriormente à assinatura do contrato-promessa, sem audição ou informação prévia à contraparte; o objecto teria sofrido, portanto, uma retracção posteriormente à assinatura do contrato.
Basta ler, porém, a matéria de facto assente para concluir que nada ficou provado nesse âmbito; não ficou, nem poderia ficar, porque, muito simplesmente, a petição inicial é completamente omissa a tal respeito.
Recorde-se que os ora recorrentes fundamentaram a acção no facto de os recorridos terem excluído intencionalmente do contrato-promessa a nova moradia edificada em substituição da anteriormente existente, “iludindo assim a boa fé daqueles”, como escreveram no artigo 14.º da PI. A questão não é, pois, de alteração no terreno do objecto prometido vender, mas de omissão no contrato do objecto que devia integrar a promessa de venda.
A nova tese não passa de um remendo, mal conseguido, numa construção pouco feliz, destinada a ruir pela base.
O problema real dos recorrentes, sejamos claros, é que se arrependeram do preço estabelecido no contrato-promessa e pretenderam renegociá-lo (alínea P dos factos assentes). Não o tendo conseguido, na medida, ao menos, em que era seu desejo, recorreram a juízo, na tentativa de resolver o contrato, sob a invocação de terem sido enganados pelos recorridos, que teriam omitido intencionalmente do objecto daquele a moradia recentemente construída. Mas, apurado em audiência, que o objecto querido do contrato-promessa foi esta mesma moradia, como os recorridos haviam sustentado, logo curaram os recorrentes de alterar o rumo da sua argumentação, defendendo, agora, que aqueles subverteram a fisionomia do prédio sem os consultar ou informar.
Ora, o se os factos alguma coisa demonstram é a cooperação leal dos recorridos para a celebração do contrato prometido nos moldes previstos no contrato-promessa: inscreveram no registo a nova moradia construída, que era o alvo da promessa e a razão de ser do estabelecimento do preço (€ 400.000,00), diligenciaram pela obtenção da documentação necessária para a celebração do contrato definitivo e compareceram no Cartório Notarial, na sequência da marcação efectuada pelos recorrentes.
Que mais lhes poderia ser exigido?
Ao invés, os recorrentes, não obstante terem assinado o contrato-promessa perfeitamente cientes do que estava em causa, em razão, aliás, do que requereram registo provisório da aquisição do todo a seu favor e registo provisório da hipoteca a favor da Caixa Geral de Depósitos, acabaram por não comparecer no acto da escritura que haviam marcado, inviabilizando, assim, a concretização do negócio prometido.
Se alguém não agiu de boa fé, foram eles, que não os recorridos. Como podem vir, agora, alegar que estes tinham a intenção de vender a nova moradia a outrem, se não se deram ao trabalho de se deslocar ao Cartório Notarial na data por eles mesmos aprazada?
Em conclusão, não ficou demonstrado que os recorridos se tenham recusado a cumprir o contrato-promessa ou tenham dificultado, fosse por que forma fosse, o respectivo cumprimento, razão pela qual não pode, nesta parte, também, o recurso obter procedência.

d) O enriquecimento sem causa
Mais uma vez, não concretizam os apelantes os pressupostos da conclusão retirada, quedando-se pela afirmação de que se verificou um enriquecimento sem causa dos recorridos à custa dos recorrentes.
Quererão referir-se, porventura, ao que desembolsaram a título de sinal, que os recorridos, naturalmente, embolsaram. Mas, se assim é, continuam a trilhar caminho errado.
Como se sabe, o enriquecimento sem causa, previsto no art. 473.º, n.º 1, do CC, pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: a) que haja um enriquecimento de alguém; b) que tal enriquecimento careça de causa justificativa; c) que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição (Antunes Varela, ob. cit. volume I, página 467).
Por outro lado, o enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, não havendo lugar à restituição quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento (artigo 474.º do mesmo diploma).
Ora, e em primeiro lugar, a deslocação patrimonial dos recorrentes para os requeridos teve origem num negócio sem vícios inerentes à sua celebração [5] ou posteriores à sua conclusão (que tenham sido declarados, pelo menos); falta de causa justificativa não se verifica, portanto.
Em segundo lugar, porque existe regime específico quanto ao sinal (artigo 442.º do CC) e a restituição fundada no enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária.
Em terceiro lugar, e decisivamente, porque o enriquecimento sem causa não foi erigido em causa de pedir na acção, nem formulado o correspondente pedido de restituição, ainda que subsidiariamente. E a sentença não pode condenar em objecto diverso do que se pedir (artigo 661.º, n.º 1, do CPC).
Logo, não procede o recurso com este fundamento.

IV. Síntese final:
1) O princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 655.º do CPC impede a alteração da matéria de facto fixada em 1.ª instância, quando a decisão tenha sido criticamente fundamentada e a fundamentação não contrarie as regras da experiência nem a lógica do raciocínio.
2) O contrato-promessa rege-se pelas regras do contrato prometido, excepção feita às da forma e às que se mostrem inaplicáveis.
3) O vício decorrente da falta de certificação notarial da existência de licença de utilização ou de construção só gera nulidade do contrato-promessa se for arguido pelo promitente comprador (ou pelo promitente vendedor, no caso excepcional em que a lei o permite).
4) Sempre que seja conhecida a vontade real dos contraentes, é de acordo com ela que o contrato deve ser interpretado; mas sendo o negócio formal, terá de haver correspondência, mínima, ao menos, entre o texto do contrato e a declaração.
5) A boa fé contratual (artigo 762.º, n.º 2, do CC) postula lealdade de cooperação entre as partes.
6) O pedido fundado no enriquecimento sem causa tem de ser formulado expressamente, ainda que em via subsidiária.
...

[1] Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, volume III, página 245.
[2] Era a posição de Antunes Varela, como se constata da obra supra citada, página 323.
[3] No mesmo sentido, Almeida Costa, última obra citada, página 37.
[4] A alteração da causa de pedir e do pedido estão sujeitos a requisitos apertados, como decorre do disposto nos artigos 272.º e 273.º do CPC.
[5] Que, a existirem, dariam lugar à restituição derivada da nulidade ou da resolução, e não do enriquecimento sem causa.»

Um Ministério para o Ensino Superior

Recorte de imprensa do artigo de opinião do Senhor Presidente do IESIG, publicado no Jornal «a Semana» do passado dia 13.

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Colectânea da legislação

sobre as «Garantias dos Particulares» (CPA)
Foi organizada em 2006, pelo Sr. Dr. João da Cruz Silva, sob a égide do Gabinete do Senhor Secretário de Estado da Administração Pública, Dr. Romeu Modesto, sendo ministro sua Excelência o Senhor Dr. João Serra.
Um agradecimento especial ao João Portugal, do 3º Ano de Direito.