Da oponibilidade a terceiros dos direitos de crédito. Abuso de direito

Mais jurisprudência útil em relação a matérias importantes de Direito das Obrigações. Neste caso, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que se pode encontrar aqui na sua totalidade:

«4.5 – Da oponibilidade a terceiros dos direitos de crédito. Abuso de direito
Chamando à colação doutrina e jurisprudência autorizada, a agravante defende que os direitos de crédito são pessoais e protegidos pelo «dever universal de respeito» e tão oponíveis como os direitos reais. Para aqueles que permanecem no equívoco da eficácia relativa das obrigações, recorda-se que o Código Civil – artigo 610º e seguintes – atribui ao credor o poder de actuar directamente contra a terceiros de má fé que tenham adquirido bens do devedor em seu detrimento.
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Cumpre decidir
A obrigação que designa o lado passivo de qualquer relação jurídica é definida no artigo 397º do CC como o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação. A prestação a que se encontra adstrito o devedor destina-se a satisfazer o interesse do credor, o qual deve ser digno de protecção legal (artigos 398º, nº 2 e 443º, nº 1 do CC). Credor e devedor devem proceder com boa fé, «princípio fundamental da ordem jurídica, com especial relevância no campo das relações civis. Exprime a preocupação da ordem jurídica pelos valores ético-sociais da comunidade, pelas particularidades da situação concreta a regular e por uma jurisdicidade social e materialmente fundada (…). A boa fé reporta-se a um estado subjectivo, tem em vista a situação de quem julga actuar em conformidade com o direito, por desconhecer ou ignorar, qualquer vício ou circunstância anterior (…). Aplicados aos contratos, o princípio da boa fé em sentido objectivo constitui uma regra de conduta segundo a qual os contraentes devem agir de modo honesto, correcto e leal, não só impedindo assim comportamentos desleais como impondo deveres de colaboração entre eles[ 7]» (artigos 227º, nº 1, 239º, 334º, 437º, nº 1 e 762º, nº 2).
Ensina o Sr. Prof. Inocêncio Galvão Teles que «nos direitos reais, além do elemento interno consistente no poder sobre a coisa, há o elemento externo, consistente no dever, para as outras pessoas, de respeitar o exercício desse poder. Segundo certa orientação, também nas obrigações, ao elemento interno –o direito contra o devedor – acresce um elemento externo – o dever, imposto a todos, de respeitar o direito do credor, não impedindo o cumprimento nem colaborando no incumprimento. Enquanto o devedor incorre em responsabilidade civil, o terceiro incorreria em responsabilidade extra obrigacional. Não repugna aceitar esta orientação, de harmonia com o princípio geral expresso no artigo 483º do CC, mas há quem a conteste, só admitindo, quando muito, a responsabilidade de terceiros em caso de abuso de direito. (…) A lei permite a atribuição de eficácia real a certos contratos, normalmente constitutivos de simples direitos de crédito – artigos 413º e 421º do CC – mas verdadeiramente aí existe, a par da obrigação, um direito real de aquisição, ou seja, o direito, oponível a terceiros de adquirir determinada coisa»[8].
O Sr. Prof. M. J. de Almeida Costa refere-se à doutrina do efeito externo, que se traduz no dever imposto às restantes pessoas de respeitar o direito do credor, ou seja, de não impedir ou dificultar o cumprimento da obrigação (…), podendo os terceiros serem chamados a responderem para com o credor, dando como exemplo que A realiza com B um contrato promessa de venda do prédio X e aliena-o depois a C [ 9], enquanto este fosse culposamente responsável pelo inadimplemento do devedor. De seguida, este Mestre toma posição, indicando que a posição dominante entre nós e que tem como exacta, não admite, em princípio, o efeito externo das obrigações [10], apesar de admitir como «válvula de segurança» o abuso de direito [11].
Já o Sr. Prof. António Menezes Cordeiro defende que os direitos de crédito, porque direitos, se impõem, juridicamente a todas as pessoas, devem ser respeitados por cada um e produzindo nessa medida efeitos erga omnes, admitindo, todavia, a possibilidade do credor pedir contas a terceiros por força das regras do abuso de direito e das cláusulas gerais [12 ].
Posição completamente distinta é defendida pelo Sr. Prof. Menezes Leitão ao escrever: a obrigação tem como característica a relatividade estrutural e o regime da responsabilidade patrimonial implica a admissibilidade de constituir direitos de crédito incompatíveis entre si, não tendo o direito de crédito anterior prevalência sobre o posterior. Em certos casos, porém, a constituição do segundo direito de crédito pode ser vista como abusiva, para efeitos do artigo 334º, caso em que o terceiro poderá ser responsabilizado [13].
No plano da jurisprudência identificámos um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no processo nº 009822, datado de 26 de Junho de 1997, que defende que a lei portuguesa não reconhece uma eficácia externa das obrigações de forma a co-responsabilizar terceiro cúmplice pela indemnização devida pela sua violação ilícita, pelo que só ao devedor por ser exigida tal violação[14]. Um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo nº 9830815, datado de 21 de Novembro de 1997 onde se afirma que a nossa ordem jurídica não acolhe a chamada eficácia externa das obrigações apenas podendo aceitar que um terceiro responda em caso de abuso de direito[15]. O Supremo Tribunal de Justiça sufraga posição idêntica considerando que terceiro não pode ser responsabilizado com base na doutrina externa das obrigações, salvo se tiver agido com abuso de poder[ 16].
Aderindo-se à tese que sustenta que a co-responsabilização de terceiro cúmplice pela indemnização só é devida desde que este invada os terrenos interditos do abuso de direito (artigo 406º, nº 2 e 334º do CC), vejamos se a matéria de facto provada permite concluir que a 1ª requerida invadiu tais domínios.
A propósito do abuso de direito, ensinava o Sr. Prof. Antunes Varela que «na sua aparente simplicidade, o artigo 334º do novo Código – o tal que define o abuso do direito – constitui, na verdade, um manancial inesgotável de soluções, através das quais a jurisprudência pode cortar cerces muitos abusos"[17]
Prescreve o artigo 334º do Código Civil
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
No dizer do Sr. Prof. Manuel de Andrade, estamos em presença de um direito «exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça»[ 18].
(…)

[7] Sr. Prof. C. A. Da Mota Pinto – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, págs. 125 a 127.
[8] Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 16 e 17.
[9] Pressupondo, naturalmente, que as partes não atribuíram eficácia real ao contrato promessa.
[10] Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 73. Na nota 2 indica profusa doutrina e jurisprudência. O Sr. Prof. M. J. de Almeida Costa escreveu um artigo doutrinal na RLJ Ano 135º, pág. 132, sobre o tema «Eficácia Externa das Obrigações. Entendimento da Doutrina Clássica, onde continua a defender, juntamente com a doutrina predominante, em princípio a não eficácia externa das obrigações. Neste artigo indica profusa jurisprudência que faz depender a responsabilidade de «terceiro cúmplice» do abuso de direito.
[11] Esta posição é igualmente defendida pelos Srs. Profs. Manuel de Andrade – Teoria Geral das Obrigações, pág. 52; Mota Pinto – Direito das Obrigações, pág. 156 e segs.
[12] Direito das Obrigações, Reimpressão – 1986 – págs. 280 e 282. Apesar da defesa do direito de crédito como direito absoluto – oponível erga omnes – não deixa de ter algum significado o exemplo que dá como forma de não responsabilização do terceiro. Diz o seguinte – todos concordam que se Caio comprar a Carlos uma coisa, ignorando, de boa fé, que este se havia obrigado a vendê-la a Catarino, não se torna, de forma alguma, responsável pela violação do crédito deste último. Obra citada, pág. 280.
[13] Direito das Obrigações, I, 3ª edição, pág. 101.
[14] Publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[15] Publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[16] Acórdão datado 19 de Março de 2002, Col. Jur. (Acs. STJ) Ano X, tomo I, pág. 141 e 142. Também o acórdão da Relação de Lisboa, datado de 16 de Maio de 2006, proferido no âmbito do processo nº 3834/2006-7 defende que a invocação da violação dos princípios da boa fé e do fim social e económico do direito de propriedade, que se reconduzam à figura do abuso de direito, legitima invocar-se a eficácia externa. No mesmo sentido se pronunciou o acórdão da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo 659/2006-6, datado de 9 de Março de 2006, no qual se apela à figura do abuso de direito como causa justificativa do recurso à eficácia externa.
[17] Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., pág. 92 e 93.
[18] Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., pág. 297.

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