Acerca da Morte

Em dia de Fiéis defuntos uma refelxão retirada de um livro de Augusto Cury, psiquiatra, investigador e escritor de sucesso:

«A crise existencial gerada pelo fim do espectáculo da vida

A morte física faz parte do ciclo natural da vida, mas a morte da consciência humana é inaceitável. Só a aceitam aqueles que nunca reflectiram minimamente sobre as suas consequências psicológicas e filosóficas, ou aqueles que nunca sofreram a dor indescritível da perda de alguém que se ama.

É aceitável o caos que desorganiza e reorganiza a matéria. Tudo no universo se organiza, se desorganiza e se reorganiza novamente. Todavia, para o ser humano pensante, a morte estanca o espectáculo da vida, produzindo a mais grave crise existencial da sua história. A vida física morre e descaracteriza-se, mas a vida psicológica clama pela continuidade da existência. Ter uma identidade, possuir o espectáculo da construção dos pensamentos e ter consciência de si mesmo e do mundo que nos cerca são direitos personalíssimos, que não podem ser alienados e transferidos por dinheiro, circunstâncias ou pacto social ou intelectual.
(…)
É inconcebível a ruptura do pulsar da vida. É insuportável a inexistência da consciência, o fim da capacidade de pensar. A inteligência humana não consegue entender o fim da vida. Existem áreas que o pensamento consciente jamais conseguirá compreender de forma adequada, a não ser no campo da especulação intelectual. Uma delas é o pré-pensamento, ou seja, os fenómenos inconscientes que formam o pensamento consciente. O pensamento não pode apreender o pré-pensamento, pois todo o discurso sobre ele nunca será o pré-pensamento em si mas o pensamento já elaborado.
Outra coisa incompreensível pelo pensamento é a consciência do fim da existência. O pensamento nunca atinge a consciência da morte como “fim da existência”, o “nada existencial”, pois o discurso dos pensamentos sobre o nada nunca é o nada em si, mas uma manifestação da própria consciência.
(…)

Só a vida tem consciência da morte. A morte não tem consciência de si mesma. A consciência da morte é sempre uma manifestação de vida, ou seja, é um sistema intelectual que discursa sobre a morte, mas nunca atinge a realidade em si.
A consciência humana jamais consegue compreender plenamente as consequências da inexistência da consciência, do silêncio eterno. Por isso, todo o pensador ou filósofo que tentou, como eu compreender o fim da consciência, o fim da existência, viveu um angustiante conflito existencial.
(…)

A maioria dos seres humanos nunca procurou compreender algumas implicações psicológicas e filosóficas da morte, antes resistiu-lhe intensamente. Porque é que em todas as sociedades, mesmo nas mais primitivas, os homens criaram religiões? O fogo, um animal, um astro eram como deuses para os povos primitivos projectarem os mistérios da existência. Poder-se-á dizer que a necessidade de uma busca mística (espiritual) é sinal de fraqueza intelectual, de fragilidade da inteligência humana? Não, pelo contrário, ela é sinal de grandeza intelectual. Expressa um desejo vital de continuidade do espectáculo da vida.
(…)

Apesar de existirem doenças psíquicas que geram uma fobia doentia da morte (*), há uma fobia legítima, não doentia, ligada ao fim da existência, que nenhum psiquiatra ou medicamento podem eliminar. A vida só aceita o próprio fim se não estiver próxima desse fim. Caso contrário, ela rejeita-o automaticamente ou então aceita-o se estiver convencida da possibilidade de o superar.
(…)

O homem psicológico, mais do que o homem animal, recusa-se a aceitar a morte. O desejo de eternidade, de transcender o caos da morte, é inerente ao ser humano, não é fruto da cultura. (…)
Os que estão vivos produzem muitos pensamentos para procurarem confortar-se diante da perda dos seus entes queridos, como “Ele deixou de sofrer”, “Ele descansou”, “Ele está num lugar melhor”. Mas ninguém diz “Ele deixou de existir”. A dor da perda de alguém é uma celebração da vida. Ela representa um testemunho claro do desejo irrefreável do ser humano de fazer prosseguir o espectáculo da existência.
Num velório, (…) os familiares, que são a maioria, fazem terapia. (…) Procuram fazer uma introspecção e reciclar-se diante da morte do outro. Dizem entre si: “A correria da vida não vale a pena”, “Não vale a pena stressar tanto”, “A vida é muito curta para lutar por coisas banais, depois morremos e fica tudo cá…”. Esta terapia de grupo não é condenável, pois representa uma visão saudável da vida. A terapia de grupo nos velórios é uma homenagem inconsciente à existência.
(…)
O desejo de continuar a sorrir, a pensar, a amar, a sonhar, a projectar, a criar, a ter uma identidade, a ter consciência de si e do mundo está além dos limites da ciência e de qualquer ideologia sociopolítica.
O ser humano possui uma necessidade intrínseca de procurar Deus, de criar religiões e de produzir sistemas filosóficos metafísicos. Tal necessidade surge não apenas como uma tentativa de superar a sua finitude existencial, mas também para explicar a si mesmo o mundo, o passado, o futuro, enfim, os mistérios da existência.
O ser humano é uma grande pergunta que por dezenas de anos busca uma grande resposta. Ele tenta explicar o mundo. Todavia, sabe que explicar-se a si mesmo é o maior desafio da sua própria inteligência.»

Cury, Augusto in «O mestre dos mestres», Livros d’Hoje, Dom Quixote, 2009.

Nota: *Síndrome do pânico e certos transtornos obsessivos compulsivos.

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